terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Aquele Dia Em Que Outra Vida Acabou - Parte II

Nesse momento o seu celular toca ao longe, talvez esteja caído no meio da rua. Não, não é o Dela, é o Dele. Ela reconhece porque é aquele toque chato que sempre anuncia que é hora de acordar. Ele, que antes a segurava bem perto de si, agora a está balançando de um lado para o outro, o que começa a irritá-la.

- Amor... amor... acorda, amor, tá na hora... - A voz Dele se faz nítida dessa vez.

Ela abre os olhos e o vê fitando-a, com aquela carinha amassada que o deixa com um bico enorme. Quando percebe que conseguiu acordá-la, Ele volta a deitar abraçando-a.

- Gosto tanto de dormir com você... durmo tão bem... - Ele diz enquanto aninha o rosto no pescoço Dela.

Ainda está nervosa, seu coração não desacelerou por completo e há uma dor no alto de sua barriga que a faz tatear rapidamente o ponto dolorido, mas nada encontra. Afinal, foi apenas um sonho ruim.

- Eu também, amor, muito mesmo! Mas hoje dormi mal... tive um pesadelo muito longo.

- Sério?! Sonhou com o que?

- Sonhei que tinha levado um tiro na barriga.

- Eu também! Sonhei que tinha levado dois tiros no peito!

- Ai, credo... tô até agora com uma sensação esquisita na barriga.

O despertador toca mais uma vez, anunciando que já se passaram cinco minutos desde a última vez que tocou.

- Já são 10:10h, melhor você ir tomar banho, se não vai se atrasar pro trabalho. - diz Ele preocupado, pois sabe que Ela não consegue tomar um banho rápido.



- Tá bom, mas antes me dá um abraço!

E Ele a abraça, bem apertado, como faz sempre, carinhoso que só Ele. Ela devolve o abraço como sempre, pois carinho é algo que não cabe em seu interior e precisa se expandir pro corpo Dele. Que bom que está tudo bem e que Eles estão ali, felizes, como sempre o são ao lado do outro.

O celular toca outra vez, mas dessa vez é uma chamada da mãe Dele que viajou, deixando a casa para os quatro: Ela, Ele, a irmã Dele e o namorado dela.

A chamada a ajuda a tomar coragem pra se levantar e ir para o banho. Estando pronta para trabalhar, os dois saem. Ele vai junto porque pretende passar no mercado para comprar comida para a pobre tartaruga que vive seus lamentos de prisioneira numa bacia vermelha, na varanda do apartamento.

O ônibus Dela passa por Eles antes de chegarem no ponto e os dois se despedem rapidamente para que Ela consiga alcançar a condução. O caminho até o trabalho não demora muito, é sábado, dez minutos para as 11h da manhã, e o trânsito está livre. Isso a faz lembrar que está indo trabalhar e que infelicidade é trabalhar sábado. Não é algo que aconteça sempre, mas quando acontece é sempre ruim, porque geralmente, Ela tem outros planos pra dias ensolarados como este. E que dia lindo por sinal. Depois de dois dias de tempestades, não era de se esperar que esse amanhecesse tão belo.

Tomara que eu termine tudo logo e consiga aproveitar um pouco ainda desse dia.

O trabalho não é ruim, na verdade é um estágio, e diferente da maioria dos estagiários que Ela conhece, gosta do seu. O que não impede que prefira passar o sábado fazendo outras coisas que não editando reportagens de última hora para o canal em que trabalha.

Chegando lá, parece que tudo correrá bem, mas ao longo do dia surgem problemas e mais problemas que a fazem ficar lá além das 17h que completariam as 6 horas de trabalho diário que lhe cabem. Sai de lá exausta e um pouco triste por ter passado um dia lindo como aquele em frente a uma tela de computador.

Volta pra casa Dele, onde Ele, a irmã e o namorado dela a aguardavam assistindo a um programa de encontro de casais, desses que se não preenchem o domingo da TV aberta, dominam o sábado. Ele está deitado na cama da mãe, assistindo a TV e tão prontamente a ver entrar no quarto a puxa para a cama e a aperta contra si.

- Calma aí, eu vou tomar um banho. - diz Ela um tanto quanto irritada, não com a demonstração de carinho, mas por pensar que podia ter passado o dia inteiro assim se não tivesse trabalhado.

- Ah, nãaao! Fica um pouquinho aqui comigo!

Ela cede a esse apelo porque afinal, é o que quer também.

Eles assistem um pouco do programa que acaba divertindo os quatro. Incrível como um programa tão inútil causa de fato divertimento as pessoas. Mas também, quem disse que o distrair tem que ter conteúdo ou ser construtivo?

- Tava pensando em ir lá no Shopping Nova América buscar minha calça que ficou lá pra fazer bainha. Vamos?

Ela faz uma careta de desagrado com a idéia de ir até o shopping só pra buscar uma calça.

- Tem que ser hoje?

- Porque, tá muito cansada?

- Tô...

- É que eu queria ir com ela na cerimônia de entrega da carteira da OAB da minha irmã, na segunda.

- Tudo bem então.

- Aaah, tudo bem não, não quero te obrigar a ir... se você tá muito cansada, então a gente fica aqui.

- Tudo bem, amor, dá pra ir.

Os dois ficam deitados por mais algum tempo aproveitando a companhia e o ar-condicionado, até que decidem se levantar pra ir ao shopping, lembrando que as lojas fecham as 22h e já passava das 20h. O casal, então começa a se aprontar com um pouco de pressa, mas como o outro casal da casa também está se arrumando pra sair e nessa confusão, só existe um banheiro, Eles acabam demorando mais do que gostariam. Assim que terminam, saem de casa e caminham em direção a estação do metrô mais próxima, a Afonso Penna. O metrô tinha sofrido algumas mudanças recentemente e a irmã Dele o tinha alertado de que a transferência para a Linha 2 agora era feita na estação Central, onde os dois saltam e embarcam em outro carro, com destino ao shopping.

Chegando lá, entram na loja, pedem a calça que ele experimenta. Constatado que estava tudo bem, Eles a levam, saindo do shopping pelo caminho mais curto até o metrô ( o mesmo pelo qual vieram) e fazendo o mesmo trajeto até a saída na estação Afonso Penna. Eles conversam muito durante todo o caminho, assuntos e assuntos que não têm fim, como sempre foi desde que se conheceram, há quase três anos. Um quadro que se agravara quando começaram a namorar, há exatos 1 ano e 5 meses desde o dia em que Ele, enfim, a pedira em namoro.

Tão logo saem, sobem a rua Professor Gabizo, apenas parando de mãos dadas, na sua esquina com a Haddock Lobo para aguardar o sinal fechar e poder atravessar a rua. Ele é o primeiro a perceber o barulho da sirene se aproxima rapidamente. Não, não é uma, são mais e a consciência disso o deixa alerta. Ela só percebe os sons quando vê 2 viaturas que se aproximam a toda velocidade perseguindo uma moto com dois homens. Na rua paira o silêncio humano, como se cada pessoa presente tivesse parado o que fazia ou falava para assistir à sinfonia de sirenes e motores. Uma terceira viatura se descoloca na contra mão, pondo-se no caminho da perseguição. O trânsito começa a desviar da viatura em meio a gritos e buzinas e o caminho se fecha para a moto que freia bruscamente, encurralada. Mas o caos só se instaura quando soa o estampido. Aquele que mesmo quem não está acostumado a ouvir, reconhece. Seguido do primeiro, uma sucessão de tiros o seguem, tiros que de tão perto, não tem direção, apenas sons a confundir os sentidos. O silêncio humano então, se quebra numa mistura de gritos e passos apressados e são esses sons que tiram os dois do transe. Eles imediatamente abaixam a cabeça protegendo-a com o braço que não segura a mão do outro e correm para a direita, na tentativa de encontrar abrigo do tiroteio por entre os carros estacionados desse lado da rua. Na esquina fica um bar que numa noite de sábado, estava cheio mas tão logo começam os tiros, as pessoas que nele estavam começam a sair e a correr para a rua desenfreadamente, ao invés de procurarem lugar pra se esconder. E nessa correria maluca, algumas delas colidem com o casal que se desloca no sentido contrário do fluxo, lançando o pânico entre os dois de se perder do outro. As mãos não suportam a força das colisões e acabam se soltando. Ela fica para trás enquanto Ele corre para a lateral de um taxi parado, que faz barreira entre a calçada e o confronto. Ela tenta segui-lo e o terror já a faz empurrar as pessoas que vêm em sua direção com toda força que pode para que desbloqueem seu caminho. Ela corre para o taxi atrás do qual Ele já está agachado esperando-a, com uma das mãos estendidas em sua direção. Assim que chega a parte da janela do taxi, vem o alívio daquele que sabe que sobreviveu. E em meio a essa mistura de sensações de medo e alívio é que ela sente uma terceira, só que ao contrário das outras, física. O beliscão a empurra com força para a esquerda, fazendo-a perder o equilíbrio e cair na calçada.

Não, não pode ser... porquê eu?!

Em meio a tantos outros gritos Ela ouve o Dele, ouve a voz, entende o tom de desespero, mas não percebe palavra.

Ela deixa o corpo pesar por sobre os braços que a sustentam desde que apararam sua queda e, deitada no chão, se vira de costas para a calçada fria. Sente as mãos Dele puxando-a pelo braço direito para perto de si. Sente a dor, logo abaixo do seu seio esquerdo e o calor do sangue que rapidamente molha sua blusa. Ele pousa uma das mãos por sobre a mancha vermelha que se avoluma, na tentativa de estancar o sangramento. A outra já segura o celular e tenta discar algum número, talvez o da emergência. Ela tenta chamá-lo pelo nome e a voz não sai, mas talvez tenha mexido os lábios, porque ele para o que está fazendo para prestar atenção Nela. Seu rosto já está coberto de lágrimas e o desespero Dele faz Ela se desesperar também. Lembra do sonho daquela manhã, daquela linda manhã que havia perdido e tenta acordar, em vão. Pensa na tarde que podia ter passado com o homem que amava fazendo nada, fazendo amor e em tantas outras que ainda queria passar com Ele. Outras pessoas já tinham se aproximado Dela, sem que percebesse, talvez tivesse apagado nesse meio tempo. Um homem que nunca vira na vida ajuda a fazer pressão no ferimento para estancar o sangue.

Não é possível que esse seja meu último dia.



Ela não quer que seja e se depara surpresa, com a fugacidade da vida. Há alguns minutos, Ela era uma pessoa com sonhos, sentimentos, futuro. Nos próximos, apenas teria sido uma, mais uma. E pensar que não havia falado uma vez sequer no dia com sua mãe... que filha desnaturada. Ela pede em silêncio para que sua irmã fique bem, que a perda não atrapalhe seus planos, sua vida e que tudo dê certo pra ela. Nesse momento o choro tenta escapar-lhe, mas entala em sua garganta. Que pena não poder acompanhar os passos dos queridos que ficam.

Algo vibra na sua perna esquerda e logo depois começa a tocar uma musiquinha alegre que Ela reconhece como o toque do seu celular. O som a remete mais uma vez ao sonho daquela manhã e com ele, uma centelha de esperança se acende em seu íntimo.

Talvez seja nesse momento em que eu acordo...

Ela

3 comentários:

  1. Puxa mari, parabéns pela história..não esperava essa reviravolta do enredo..bem bacana....
    ps:vários lances auto-biográficos aqui hein...seria um conto de auto-reflexão hein? hahaha
    bjos!

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  2. Tb senti essa auto-referência no conto. Vc morreu?!

    Só um comentário. Achei o texto muito longo e tenho certeza de que algumas passagens você poderia retirar pra tornar a leitura mais dinâmica. Sei q muito do que foi escrito era pra dar dramaticidade à coisa, mas penso que nem tudo era realmente necessário.

    Em todo caso, eu gostei e espero que você acorde.

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  3. Mari, vc quer me matar do coração, né??
    Vc não levou um tiro não, né?? Pelo amor de Deus!

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