terça-feira, 2 de março de 2010

Aquele Dia Em Que Outra Vida Acabou - Parte III

Tudo bem, eu não morri, está tudo bem e essa história é apenas uma ficção. Pelo menos até a parte da volta do shopping.

A verdade é que tanto eu, quanto Ele, somos dois enrolados e distraídos. A nova placa com os caminhos do metrô dizia que teríamos que saltar na estação Central, mas não dizia que após as 21h, a transferência é feita na estação Estácio de sempre, o que descobrimos quando saltamos na estação errada. Tivemos que esperar o próximo carro para voltarmos e desembarcarmos na certa. Na saída do shopping, ao invés de sairmos pelo caminho mais curto, acabamos dando uma volta inteira nele e na volta pelo metrô, conversávamos tão entretidos que nos encaminhamos para a plataforma certa, mas quando o primeiro carro chegou na plataforma para o outro sentido, entramos nele sem perceber. O equívoco só ficou aparente na estação seguinte, mas tarde demais para que descêssemos nela e outra vez acabamos na Central. No fim, antes de irmos pra casa, ainda passamos no mercado rapidamente pra levar suprimentos para o domingo, o que fechou nossa sessão de pequenos desvios de tempo.

A questão é que esse pequenos desvios, conspiraram ou aconteceram de forma que chegássemos apenas alguns minutos depois de todo o episódio de violência ter se desenrolado e, embora nada tenha acontecido comigo, ou com Ele, esse foi sim, mais um dia em que uma vida acabou abruptamente em meio a um tiroteio, a vida da Miriam Santos Souza, funcionária de um salão de beleza que provavelmente estava apenas voltando pra casa após mais um dia de trabalho e que possivelmente deixou marido e filhos desolados com a perda repentina e angustiados pela impotência diante da situação.

Matéria completa do "O Dia Online".


É nesse tipo de circunstância, principalmente, que entra o “se”. E “se” não isso e “se” aquilo, quem sabe? Enquanto a vida preencheu a Nossa noite de “ses”, evaziou a da Miriam com um ponto final. E é claro que isso rendeu a nós dois mais uma longa conversa sobre a presença da fatalidade e a não existência de um Deus nos fatos do dia a dia de nós humanos, mas não vou entrar nesses méritos. A grande questão que enxergo nisso tudo é a de que, muito provavelmente você está lendo isso e pensando: “Que bandidos miseráveis, filhos duma égua!” (Ok, não necessariamente com este vocabulário) e de fato, é como a maior parte das pessoas pensa ou pensaria. “Levaram um fim merecido. Bandido bom é bandido morto”. E eu não vou, de forma alguma defender a barbárie que é tirar a vida de alguém, mas também acredito que é fácil cortar a linha de raciocínio por aí. “Joguemos uma bomba na favela e pronto, resolvido”, já ouvi algumas vezes quem dissesse isso e não culpo, somos induzidos a tal muitas vezes. Mas se pararmos e pensarmos mais a fundo sobre o assunto, talvez encontremos problemas no alicerce do sistema em que vivemos, um sistema que privilegia, que segrega, que renega. E quem tem a sorte de não nascer perto ou dentro da parte que é segregada e renegada por ele, dá continuidade a esse processo por meio do preconceito.

Digo sorte por que é no que acredito, talvez você acredite que nasceu longe da violência “graças a Deus” e que merece seu berço tanto quanto o pobre merece dormir no chão. Talvez acredite que só o esforço deste compensará e o tirará dessa vida, mesmo que você nunca tenha se esforçado para se manter na escola, para agüentar a fome, para dormir apesar dos tiros e do medo tão próximos. De fato, alguns conseguem se livrar de tudo isso pelo esforço, pelo sacrifício, para então integrar a nata do sistema e contribuir para a permanência dele.

Me parece uma contradição sem tamanho alguém crer que exista um deus que ame a todos os seus filhos de forma igual e que esse mesmo deus, privilegie uns mais do que outros já no berço, no único momento em que não se tem culpa de nada. O problema, está nos homens que tendem ao egoísmo, embora dotados de inteligência para afastar essa característica das suas ações e assim, atingir a humanidade. O sistema em que vivemos é baseado nesse lado primitivo que se tornou a base do nosso pensar moderno e razão do existir de tantos pensamentos como o de que é exclusivamente culpa do pobre a sua própria miséria e seu enveredar para a criminalidade. Sinceramente, não consigo ver idéia mais segregadora que esta.

Enfim... vou parar por aqui por hoje. Talvez um dia me alongue no assunto, que considero tão importante de se discutir, mas até lá, quem quiser, avalie a possibilidade do que escrevi fazer algum sentido e de difundir um pouco essa idéia de que a violência tem influência direta do sistema em que vivemos, da desigualdade e da falta de humanidade entre os homens, e quem sabe um dia, não será tão alto o número de vidas a acabar tão repentinamente e nem o de pessoas que sofrem lentamente as dificuldades de uma vida que não podem escolher. Quem discordar, tudo bem. Entre tantas mil maneiras de se pensar, a minha é apenas mais uma e respeito as que diferem dela, pois não pretendo mudar a cabeça de ninguém, mas quem sabe, abrir algumas...

... é apenas uma idéia.

Ela

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