terça-feira, 20 de julho de 2010

Comunidade



Em uma típica manhã de verão carioca, daquelas que a pessoa só tem duas opções: ou vai à praia ou se mata devido ao desespero provocado pelo calor, um ônibus de uma dessas linhas que liga a Zona Norte a Zona Sul, é esse mesmo que está pensando, aquele que o ponto final causa arrepios nos mais “nobres” freqüentadores da praia, seguia abarrotado de pessoas que optaram por continuarem vivas no calor infernal. A viagem seguia nada confortável, dava até para sentir inveja das sardinhas em suas latas, compartilhavam-se os fluidos corporais e era impossível identificar se você estava suando ou se era apenas uma contribuição do companheiro ao lado.

O trânsito não contribuía e a infindável Av. Nossa Senhora de Copacabana dava nítida sensação de estar atravessando o estado da Bahia, a praia nunca chegava! 90% das pessoas pareciam pertencer a uma espécie de mundo diferente, falavam um dialeto próprio, trajavam roupas peculiares e levavam muitas sacolas, isopores e bolsas térmicas. Os outros 10%, apesar de representar a incontestável minoria, estavam visivelmente incomodados de dividir esse espaço com indivíduos tão peculiares, sentiam-se portadores dos padrões adequados e ultrajados pela violação das “normas” mais sensíveis da sociedade – esse bando de “favelados” – pensavam muitos!!!

Esses mal falados “favelados” vivem em uma organização social sujeneris a auto denominada “comunidade”. É uma espécie de corpo estranho à cidade e ao mesmo tempo inerente a sobrevivência da mesma, lá vivem aqueles a quem é negado o direito a cidade e que tanto incomodam (pelo jeito de falar, vestir, andar, pelo gosto musical, etc) àqueles que exercem e exigem privilégios da cidade.

Considerando que a esmagadora maioria da população do ônibus pertence a uma dessas comunidades podemos, pelos rigores estatísticos, usar essa recorrente cena cotidiana como uma espécie de teatro da vida citadina. Voltemos então ao coletivo. As pessoas pareciam fazer parte da mesma família, com algumas inconvenientes exceções, conversavam em voz alta com uma intimidade mútua. O filho de “uma”, que pedia biscoito, ia no colo da “outra” que gritou (aliás ela gritava sempre, mas nesse momento ela fez um esforço particular) e pediu para alguém do fundo do ônibus o “Trakinas” que prontamente Foi disponibilizado para a criança. Falavam gírias, aquelas abertamente ridicularizadas por pessoas que se acham especiais e detentoras do direito de classificar as pessoas pejorativamente pelo o que elas falam e vestem. Não demonstravam o menor incômodo em relação aos olhares enojados e arrogantes dirigidos a eles pela minoria arrogante, ao contrário, essa minoria é que parecia estar sendo desrespeitada e agredida por um bando que “não tem o mínimo de educação”.

Enquanto os “favelados“ pareciam fazer jus ao nome dado ao local onde vivem, relacionavam-se em uma espécie de comunhão na qual todos eram tratados nominalmente como se realmente a vida de “um” fosse a extensão da vida do “outro”. Os outros passageiros consideravam isso um ato de completa falta de civilidade, pois estas atitudes ferem a égide do individualismo em que vivemos, em que as relações são circunscritas a uma pequena dezena de pessoas. Esse estilo de vida espontâneo, solidário e cooperativo é coisa de favelado, civilizado é não conhecer ninguém do prédio aonde mora e negligenciar as necessidades mais proeminentes das pessoas ao seu redor, passando a vida achando que o mais importante é satisfazer as suas próprias necessidades.

Chegando ao ponto final, os “favelados” saem ansiosos em direção a praia e ignoram completamente os acontecimentos da viagem, já aquelas poucas pessoas tão incomodadas pelo incessante falatório e pelas gírias, logo que descem do ônibus iniciam uma conversa, na qual reclamam efusivamente dos demais ocupantes. Paradoxalmente, para estes últimos indivíduos que tanto abominam esse estilo de vida coletivo, que pouco se interessam pelas pessoas em sua volta, tem como prática corrente julgar e condenar comportamentos alheios. É assim, não se quer saber o que as pessoas são ou o que elas precisam, mas sim o que elas parecem e podem oferecer enquadradas dentro de um padrão arrogante de comportamento.


Ele

Um comentário:

  1. Bacana o texto!

    Paulo Freire teria vários comentários como: "zonas felizes da cidade e zonas tristes da cidade"; "falar certo"; etc

    abraço.

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