Ao ler este pequeno texto fui surpreendido pela criatividade e perspicácia do autor, Armando Avena, ao tomar emprestada a personalidade de Marx para explicar as transformações ocorridas no capitalismo ao longo do século XX. Recomendo esta leitura rápida e prazerosa a todos e espero que ela lhes proporcione alguns minutos de reflexão. Deliciem-se com o texto!!!!
Foi um grande avanço da ciência. Depois de exaustivos estudos, os cientistas encontraram a técnica de transposição no tempo e no espaço. Perplexo, o mundo inteiro parou para ver o primeiro homem que viria do passado para o presente. A escolha tinha sido difícil. Os filósofos queriam Platão, os religiosos exigiam que fosse Jesus, os militares preferiam Napoleão, mas as empresas transnacionais, que patrocinavam o evento, queriam Marx.
Era uma escolha emblemática. Karl Marx tinha sido o criador do socialismo, o homem que havia previsto o fim do sistema capitalista de produção e ninguém melhor do que ele para explicar por que suas previsões haviam falhado. Estava na hora de explicar o fiasco da União Soviética e de louvar o capitalismo e sua fantástica capacidade de perpetuação.
Como o processo de transposição no tempo permitia uma estada no futuro por apenas 48 horas, tudo foi planejado de modo que no primeiro dia, através de um moderno sistema de multimídia, Marx pudesse se inteirar do que havia ocorrido de importante no século XX, para que no dia seguinte respondesse, em rede mundial de televisão, às perguntas dos jornalistas do mundo inteiro.

A primeira reação de Marx, ao se ver materializado no futuro, foi de espanto e estupefação, mas gradualmente a mente privilegiada do pai do socialismo percebeu o que se passava e a extraordinária possibilidade de checar suas teorias. Aprendeu em minutos a manejar o computador e mergulhou de cabeça no conhecimento e na análise dos acontecimentos ocorridos depois de sua morte. Não dormiu um momento sequer e, no dia seguinte, quando se apresentou à indócil platéia de jornalistas, ainda tinha um ar estupefato mas parecia extremamente seguro, como se pudesse explicar tudo o que havia acontecido depois da sua morte.
Não demorou um segundo e uma pergunta partiu do fundo da sala, questionando o marxismo e sua aplicação na União Soviética e pedindo explicações para o fracasso do socialismo. E, então, urna voz tonitruante tomou conta do auditório e o velho Marx falou o que ninguém esperava ouvir:
- Se aquilo que implantaram na tal de União Soviética for marxismo, eu não sou marxista!
E começou a explicar que jamais admitiu a possibilidade de um país pobre e quase feudal, como a antiga Rússia, chegar ao socialismo. Segundo Marx, isso não poderia ocorrer porque o socialismo pressupunha um alto nível de desenvolvimento tecnológico e uma produção abundante. Não se poderia socializar a miséria, por isso a pátria do novo regime teria de ser obrigatoriamente uma sociedade opulenta. Lembrou que suas previsões indicavam a Inglaterra, o país mais desenvolvido de sua época, como o primeiro lugar onde ocorreria a revolução socialista. E que nunca passou por sua cabeça que a revolução pudesse ser feita em um país não-industrializado, através de uma esdrúxula aliança entre camponeses, proletários e a pequena burguesia.
Lembrou também que jamais aceitaria a tese do socialismo num só país ou num bloco de países. Isso não poderia acontecer pois ia de encontro à lógica do processo. Se a revolução acontecesse no país mais desenvolvido do planeta, a força dessa potência determinaria que os demais países seguissem a mesma linha e em breve todos seriam socialistas. Mas, se contra todas as evidências, a revolução ocorresse num país atrasado, as potências capitalistas nunca permitiriam que ela se expandisse; pelo contrário, estes países, até pela necessidade de sobrevivência, atuariam sempre como contra-revolucionários, lutando para destruir o socialismo.
- Essa história de socialismo num só país ou num bloco deles é coisa desse tal Lênin e desse outro, vade retro, Stalin. Quanto a mim, neste ou no outro mundo continuarei a ser internacionalista.
A expressão quase possessa daquele homem impressionou o auditório, mas não evitou que novas perguntas pipocassem por toda a sala. Uma delas foi incisiva e questionava as previsões de Marx, que garantiam que o socialismo se expandiria por todo o planeta. Alguém indagava, com visível ironia, sobre o que havia salvado o capitalismo da crise e da destruição que ele havia previsto.
- Fui eu, Marx, quem salvou o capitalismo!
Todos ficaram atônitos, alguns riram sem contudo esconder a perplexidade. Nesse momento, Marx fez seu mea culpa. Reconheceu que havia errado em muitas de suas previsões e que fora excessivamente evolucionista, acreditando numa tendência inexorável dos acontecimentos. Seu maior erro porém foi não ter previsto a incrível capacidade de adaptação do sistema capitalista. Se o sistema permanecesse o mesmo, se a exploração selvagem perdurasse, se os salários continuassem em níveis irrisórios seria inevitável à revolução e suas previsões se confirmariam. Mas, ao anunciar o fim do capitalismo, ele, Marx, dera uma alternativa aos trabalhadores, e a Revolução Russa, mesmo desvirtuando a essência teórica do marxismo, parecia demonstrar que esta esperança estava próxima. Para sobreviver, as classes dominantes tiveram que ceder alguns privilégios. O medo do comunismo fez o capitalismo mudar.
E o que se viu nos países ricos foram mudanças até certo ponto radicais, que melhoraram a vida dos trabalhadores, reduziram sua jornada de trabalho e aumentaram os salários acima dos níveis de subsistência. Como pensar em revolução, se o proletariado desses países recebe um salário digno, educação e saúde gratuita e até, suprema ironia para quem falava da necessidade de um exército de desempregados, seguro-deserrprego. Os países ricos provaram que era possível distribuir a renda sem mexer no sistema capitalista de produção.
De repente, um barulho infernal tomou conta da sala e, em coro, surgiu a indagação:
- Então, Marx mudou?
A resposta veio de imediato:
- Quem mudou não fui eu, foi o capitalismo!
E o velho pensador mostrou que o capitalismo moderno era completamente diferente daquele que ele havia analisado e que se pudesse novamente estudá-lo teria de reescrever O capital. Todavia, antes que algum incauto dissesse que ele era um vira-casaca, que estava elogiando o sistema, apressou-se em dizer que o novo capitalismo tinha tantos problemas quanto o anterior. Que o desemprego era a praga deste século, e que, se havia alguma justiça social nos países ricos, a miséria nos países pobres era tão grande quanto na sua época.
Um extraordinário burburinho tomou conta da sala, mas o silêncio foi total quando alguém se levantou e pediu uma declaração enfática de Marx contra a privatização das empresas estatais, afinal o pai do socialismo deveria ser favorável à estatização.
Qual o quê! Marx mostrou que não poderia ser a favor da ampliação do estado, pois sua teoria tinha como meta exatamente a extinção do estado, que sempre é cooptado pelas classes dominantes. A função da ditadura do proletariado era acabar com o estado burguês, e pavimentar o caminho para o comunismo, um sistema em que não haveria estado. Os soviéticos criaram um estado burocrático, que pouco tinha a ver com as idéias marxistas. Do ponto de vista marxista não havia defesa possível para a estatização.
Novamente gritos de protesto e uma pergunta ecoou por toda a sala:
- E o futuro? E o futuro?
Marx era um profeta incorrigível e mais uma vez caiu em tentação. Previu novamente a revolução. Mas alertou que o conflito não seria mais entre proletários e capitalistas, entre esquerda e direita. Estabeleceu que essas categorias estavam ultrapassadas e vaticinou que o drama do mundo moderno seria o confronto entre ricos e pobres. A dualidade entre a opulência dos países ricos e a miséria dos países pobres seria o estopim da nova revolução. Uma Europa cercada de fundamentalistas por todos os lados, hordas de miseráveis invadindo as grandes cidades e a maior potência do mundo invadida por milhares de mexicanos famintos. O auditório ficou em silêncio e o próprio Marx calou-se como que temeroso de sua profecia. Antes que a entrevista se encerrasse, uma frase ecoou no recinto:
- É, mesmo morto, o velho Marx continua brilhante.

Foi um grande avanço da ciência. Depois de exaustivos estudos, os cientistas encontraram a técnica de transposição no tempo e no espaço. Perplexo, o mundo inteiro parou para ver o primeiro homem que viria do passado para o presente. A escolha tinha sido difícil. Os filósofos queriam Platão, os religiosos exigiam que fosse Jesus, os militares preferiam Napoleão, mas as empresas transnacionais, que patrocinavam o evento, queriam Marx.
Era uma escolha emblemática. Karl Marx tinha sido o criador do socialismo, o homem que havia previsto o fim do sistema capitalista de produção e ninguém melhor do que ele para explicar por que suas previsões haviam falhado. Estava na hora de explicar o fiasco da União Soviética e de louvar o capitalismo e sua fantástica capacidade de perpetuação.
Como o processo de transposição no tempo permitia uma estada no futuro por apenas 48 horas, tudo foi planejado de modo que no primeiro dia, através de um moderno sistema de multimídia, Marx pudesse se inteirar do que havia ocorrido de importante no século XX, para que no dia seguinte respondesse, em rede mundial de televisão, às perguntas dos jornalistas do mundo inteiro.

A primeira reação de Marx, ao se ver materializado no futuro, foi de espanto e estupefação, mas gradualmente a mente privilegiada do pai do socialismo percebeu o que se passava e a extraordinária possibilidade de checar suas teorias. Aprendeu em minutos a manejar o computador e mergulhou de cabeça no conhecimento e na análise dos acontecimentos ocorridos depois de sua morte. Não dormiu um momento sequer e, no dia seguinte, quando se apresentou à indócil platéia de jornalistas, ainda tinha um ar estupefato mas parecia extremamente seguro, como se pudesse explicar tudo o que havia acontecido depois da sua morte.
Não demorou um segundo e uma pergunta partiu do fundo da sala, questionando o marxismo e sua aplicação na União Soviética e pedindo explicações para o fracasso do socialismo. E, então, urna voz tonitruante tomou conta do auditório e o velho Marx falou o que ninguém esperava ouvir:
- Se aquilo que implantaram na tal de União Soviética for marxismo, eu não sou marxista!
E começou a explicar que jamais admitiu a possibilidade de um país pobre e quase feudal, como a antiga Rússia, chegar ao socialismo. Segundo Marx, isso não poderia ocorrer porque o socialismo pressupunha um alto nível de desenvolvimento tecnológico e uma produção abundante. Não se poderia socializar a miséria, por isso a pátria do novo regime teria de ser obrigatoriamente uma sociedade opulenta. Lembrou que suas previsões indicavam a Inglaterra, o país mais desenvolvido de sua época, como o primeiro lugar onde ocorreria a revolução socialista. E que nunca passou por sua cabeça que a revolução pudesse ser feita em um país não-industrializado, através de uma esdrúxula aliança entre camponeses, proletários e a pequena burguesia.
Lembrou também que jamais aceitaria a tese do socialismo num só país ou num bloco de países. Isso não poderia acontecer pois ia de encontro à lógica do processo. Se a revolução acontecesse no país mais desenvolvido do planeta, a força dessa potência determinaria que os demais países seguissem a mesma linha e em breve todos seriam socialistas. Mas, se contra todas as evidências, a revolução ocorresse num país atrasado, as potências capitalistas nunca permitiriam que ela se expandisse; pelo contrário, estes países, até pela necessidade de sobrevivência, atuariam sempre como contra-revolucionários, lutando para destruir o socialismo.
- Essa história de socialismo num só país ou num bloco deles é coisa desse tal Lênin e desse outro, vade retro, Stalin. Quanto a mim, neste ou no outro mundo continuarei a ser internacionalista.
A expressão quase possessa daquele homem impressionou o auditório, mas não evitou que novas perguntas pipocassem por toda a sala. Uma delas foi incisiva e questionava as previsões de Marx, que garantiam que o socialismo se expandiria por todo o planeta. Alguém indagava, com visível ironia, sobre o que havia salvado o capitalismo da crise e da destruição que ele havia previsto.
- Fui eu, Marx, quem salvou o capitalismo!
Todos ficaram atônitos, alguns riram sem contudo esconder a perplexidade. Nesse momento, Marx fez seu mea culpa. Reconheceu que havia errado em muitas de suas previsões e que fora excessivamente evolucionista, acreditando numa tendência inexorável dos acontecimentos. Seu maior erro porém foi não ter previsto a incrível capacidade de adaptação do sistema capitalista. Se o sistema permanecesse o mesmo, se a exploração selvagem perdurasse, se os salários continuassem em níveis irrisórios seria inevitável à revolução e suas previsões se confirmariam. Mas, ao anunciar o fim do capitalismo, ele, Marx, dera uma alternativa aos trabalhadores, e a Revolução Russa, mesmo desvirtuando a essência teórica do marxismo, parecia demonstrar que esta esperança estava próxima. Para sobreviver, as classes dominantes tiveram que ceder alguns privilégios. O medo do comunismo fez o capitalismo mudar.
E o que se viu nos países ricos foram mudanças até certo ponto radicais, que melhoraram a vida dos trabalhadores, reduziram sua jornada de trabalho e aumentaram os salários acima dos níveis de subsistência. Como pensar em revolução, se o proletariado desses países recebe um salário digno, educação e saúde gratuita e até, suprema ironia para quem falava da necessidade de um exército de desempregados, seguro-deserrprego. Os países ricos provaram que era possível distribuir a renda sem mexer no sistema capitalista de produção.
De repente, um barulho infernal tomou conta da sala e, em coro, surgiu a indagação:
- Então, Marx mudou?
A resposta veio de imediato:
- Quem mudou não fui eu, foi o capitalismo!
E o velho pensador mostrou que o capitalismo moderno era completamente diferente daquele que ele havia analisado e que se pudesse novamente estudá-lo teria de reescrever O capital. Todavia, antes que algum incauto dissesse que ele era um vira-casaca, que estava elogiando o sistema, apressou-se em dizer que o novo capitalismo tinha tantos problemas quanto o anterior. Que o desemprego era a praga deste século, e que, se havia alguma justiça social nos países ricos, a miséria nos países pobres era tão grande quanto na sua época.
Um extraordinário burburinho tomou conta da sala, mas o silêncio foi total quando alguém se levantou e pediu uma declaração enfática de Marx contra a privatização das empresas estatais, afinal o pai do socialismo deveria ser favorável à estatização.
Qual o quê! Marx mostrou que não poderia ser a favor da ampliação do estado, pois sua teoria tinha como meta exatamente a extinção do estado, que sempre é cooptado pelas classes dominantes. A função da ditadura do proletariado era acabar com o estado burguês, e pavimentar o caminho para o comunismo, um sistema em que não haveria estado. Os soviéticos criaram um estado burocrático, que pouco tinha a ver com as idéias marxistas. Do ponto de vista marxista não havia defesa possível para a estatização.
Novamente gritos de protesto e uma pergunta ecoou por toda a sala:
- E o futuro? E o futuro?
Marx era um profeta incorrigível e mais uma vez caiu em tentação. Previu novamente a revolução. Mas alertou que o conflito não seria mais entre proletários e capitalistas, entre esquerda e direita. Estabeleceu que essas categorias estavam ultrapassadas e vaticinou que o drama do mundo moderno seria o confronto entre ricos e pobres. A dualidade entre a opulência dos países ricos e a miséria dos países pobres seria o estopim da nova revolução. Uma Europa cercada de fundamentalistas por todos os lados, hordas de miseráveis invadindo as grandes cidades e a maior potência do mundo invadida por milhares de mexicanos famintos. O auditório ficou em silêncio e o próprio Marx calou-se como que temeroso de sua profecia. Antes que a entrevista se encerrasse, uma frase ecoou no recinto:
- É, mesmo morto, o velho Marx continua brilhante.

Ele